Talvez ela começasse a sonhar no estilo do “era uma vez”, mas era algo mais diferente, no estilo mais dele, no estilo de “uma vez era”. Olhados de cima, nem pareciam que existiam, sabe. Estava escuro e era noite. O céu ia estrelando cada vez que eles matavam um pouquinho da saudade. A única coisa que se via, de cima, era uns pontinhos cor-verde-que-dói-os-olhos e uma brasinha em chama. De perto, pareciam um segundo captado do clique fotográfico: o fundo escuro e eles com quase movimentos, em pause e com a legenda, interprete. Um minuto para a imortalidade em cores de outono, meio amarelado pelo flash e embaçado pela agitação da câmera - os olhos.
Ela chegou atrasada. Quando entrou na sala, ele estava lá, calmo, sentado e lendo – como de costume. Ele a viu e fechou o livro com aquele sorriso que se diz oi. Ela respondeu também, com um sorriso de olá.
- Hoje poderei desfrutar da sua companhia? – perguntou ela.
- Só se eu puder ter a tua! – respondeu ele.
- Faz tempo desde a última vez!
- É, faz tempo. Estava sentindo falta de suas palavras.
- E eu das suas.
- Vamos para a varanda?
- Vamos.
Ele sentou na rede. Ela sentou na sacada para observar o céu com mais facilidade.
- Ainda o céu. – Disse ele.
- Ainda. – ela falou olhando para cima.
- Você com seu vício inocente e eu com o meu nocivo – Disse ele acendendo o cigarro.
- Nem por isso você deixa de compartilhar os meus vícios.
- E você nunca precisou compartilhar dos meus. Diria que não faz parte da multidão em furta-cor que você carrega, mesmo sozinha.
- Eu compartilho de um vício seu: as palavras.
- Essas palavras que tanto amo.
- É, essas palavras que tanto amo e odeio. Paradoxalmente, a antítese mais gostosa da minha vida.
- Intensas! Todas as palavras.
- Como seus sentimentos. Como as cores que te compõe.
Ele riu.
Ela olhou para o céu.
- Que dia é hoje? – perguntou ela.
- Você escolhe. Pode ter sido ontem, hoje ou amanhã. Eu prefiro dizer que é agora.
- Sem linearidade.
- Sem linearidade.
- Gosto de como subentende o segredo do tempo. Tu fazes uma narrativa sem início, meio e fim instigando a quem dizes sobre o valor da estação.
- Tempo é vida.
- É tudo e nada.
- Estou em primavera.
- Eu em outono.
- Por que outonas? Sempre me pareceu tão primavera.
- Estou me resguardando do exterior.
- Para se encher dos sentimentos não-corruptos do mundo?
- Na verdade, para expor ao mundo meus sentimentos contemporâneos.
- Passei um tempo em inverno com os olhos afundados para meu “in”. Via um abismo e quando eu o encarava ele lia meus medos.
- O que você fez?
- Convidei-me para sair!
- E agora primaveras com seu “in” para “out”.
- Diria que vivo lendo meu out e escrevendo-o, mas é que o out tá tão dentro do in que às vezes misturo tudo.
Riram.
- Como você definiria nosso convívio? – Perguntou ela.
- Nuance. Para mim, não existe melhor palavra.
- Você não poderia ter definido melhor.
- Assim como você me definiu de caixa de som, na foto.
Sorriram.
- Ainda está lá.
- Ainda estou lá.
Silêncio.
- Sabe aquela sensação de que você tem um amigão/amigona e ficam grudados o dia inteiro, mas por razões do destino acabam se vendo menos no dia a dia e dá aquela saudade do tipo: véééi, preciso falar urgentemente com Maria/Chico. E aquela saudade só passa quando voltam a andar grudados de novo??
Então, é assim que me sinto quando ficamos muito tempo sem trocar palavras.
Ele a olhou com carinho.
- Sabe, essa sua mania de fazer de cada sentimento uma história diferente me encanta. Precisamos mesmo sempre prosear, falar sobre o céu, sobre o mar, sobre o mais!
Olharam-se em sorriso.
- Como é quando acorda? – Interrogou ele.
- Sei como é meu sempre. Sempre soube, desde que nos conhecemos sem nos conhecer, que és meu amigo. É sentir, sabe. Sinto que é e isso me basta.
- Sou cético. Mas quando se trata de sentir, como sabes, acredito.
- “Todo abismo é navegável a barquinho de papel”, Guimarães Rosa. Lembrei disso agora, sobre o abismo de antes, dos medos.
- “E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”, Nietzsche.
- O abismo nada mais é do que o lado escuro que não conhecemos da casa.
- Só acender a luz. O difícil, apenas, é encontrar o interruptor e encarar o que se viu, porque nem sempre gostamos do que vemos e apagamos a luz.
- Mas não seremos os mesmos depois da nova descoberta.
- Mas pode-se fingir.
- Fingir é superficial. Não combina com você que é intenso.
- Nem com você que é feita de amor da cabeça aos pés.
Foi a vez dela: olhou-o com carinho.
- Você é o conjunto de tudo. Se é para te falar, falaria e falo que é feito de poeticidade da cabeça aos pés. Sempre será poesia. Rapaz, vou guardar tuas cores comigo.
Ele levantou e beijou-a na testa.
- Qual será nosso próximo cenário? – Perguntou ele olhando para o céu.
- Talvez uma casinha na rua Himmel antes do bombardeio. – ela respondeu olhando para o céu.
- Sempre o céu.
- Sempre.
Silêncio.
- Como de praxe, ótimas trocas de palavras. Mas tenho que ir, porque o galo já canta.
- Sempre ótimo falar-te. Obrigada por ter guardado um sonho bom para mim. – Disse sorrindo.
- Te vejo?
- No meu sonho, no teu sonho!
Ele riu.
Ela completou o sorriso:
- Bom acordar-te.
- O mesmo para ti, querida. Acordarei – disse com um sorriso serelepe – vendo uns pontinhos verdes toda vez que piscar.
Ela olhou para as unhas: verde-fluorescente-brega.
Riram.
Abraçaram-se.
Despediram-se.
Eram eles: queridos amigos.
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Quem se atreve a me dizer do que é feito o samba, Jota?