- É verdade - disse ela sem medo - que eu sinto falta disso tudo! Sinto mesmo. Sinto falta de você e você finge que não sabe que existe em mim. Você tá aqui - pousou levemente a mão no coração - dentro de mim e me dói. Meu Deus do céu, você me dói!
Tinha os olhos marejados de lágrimas. Ficou um tempo respirando, puxando força para dentro de si. Nunca foi covarde, mas hoje a coragem existia nela como uma rainha forte que avassala os inimigos sem piedade, sem olhar para trás. Levantou os olhos devagar, encarou-o bem: seus olhos procuravam a alma dele.
- Eu quis você. Eu desejei fazer parte de ti. Você estava naquela árvore, olhando para mim, se afastando daquela menina para que eu não pensasse que existia algo entre vocês. Você fez comparações bobas sobre sua camisa azul-marinho e a minha vermelha. Você me quis e não teve coragem de falar, de demonstrar, de tocar. Você teve medo de que o pouco que sentia por mim crescesse.
Ficou séria. Respirou fundo mais uma vez, continuou a encará-lo, mas sem lágrimas:
- Você tem medo de me olhar nos olhos! – sua voz saía firme – Você tem receio da minha presença.
Ficou olhando-o na esperança que ele dissesse algo. Lembrou do carro, das pessoas.
- Eu estava me sentindo tão nós quando te ensinei a dirigir e paramos naquela loja de conveniência. Eram os anos sessenta, né? Nos perdemos por alguns minutos e eu fiquei feliz ao saber que havia perguntado por mim. Existiam ligações entre nossas almas, ou existem, não sei. Estou perdida com toda essa história. Será tudo isso verdade, você pode me dizer?
Ele ficou em silêncio. Estava perplexo. Totalmente sem ação. Sentia algumas dessas aproximações, mas era como se não a conhecesse conhecendo-a. Confusões brotavam em sua cabeça, bagunçavam-lhe os sentidos e sensações. Eram lembranças boas, mas não eram desse presente. Podia tomar essas lembranças como reais? Sabia que sim, que podia, mas não aceitava. Como era difícil aceitar.
- Eu sei que esteve comigo na noite passada. Não consigo lembrar, mas sei da sua presença. Você podia ter me contado, facilitaria muita coisa para nós hoje. Porém, você se prendeu mais uma vez. Embora você fugisse do assunto, eu estava lá te encorajando, e você não deixava que as palavras saíssem.
Ele lembrou. Passaram a noite juntos, conversaram. Não se lembrava de todas as partes da conversa, mas ela havia dito tudo, ele também. Foi uma noite doce. A companhia dela era sempre agradável, tão linda. Observava-a e ela nem imaginava. Gostava quando o cabelo dela ficava solto, combinava com o sorriso. Os gestos largos, tão dela. Sentiu-se culpado. Ela falou mais uma vez:
- Recebi uma mensagem no celular uma vez, dizia, entre outras coisas, que eu não deixasse de pensar em você. Tomei aquilo como um sinal e resolvi não parar de pensar em você, porque eu havia decidido, sabe, tinha decidido que não ia alimentar sua presença na minha imaginação. E continuei. Acho que me iludi . Só acho, porque essa certeza me machucaria.
Sorriu sem graça, com a cabeça baixa.
Ele ficou olhando para ela. Ainda perplexo.
- Estou tomando uma decisão agora, acho que você sabe. Creio que você tem levemente o conhecimento disso. Estou te deixando. Estou indo embora desse sentimento que me apega a você. Você está livre dessa pressão invisível que minha alma causa na sua. Desculpe, não queria que levantasse bloqueios contra mim. Mas antes de ir embora totalmente, quero te dizer uma coisa: você deve se permitir, ok? Não tenha medo. Lute contra suas limitações – respirou com alívio - Agora eu posso ir por completo.
E foi. Ela foi embora.
Ele estava mais leve. Sem pressões. Mas sentia que ia perdê-la. Ficou quieto. O silêncio dele ia virar arrependimento, em algum momento alguém soube isso. Achou que o sentimento de perda não era significante. Um erro, as pessoas não estão à nossa disposição. E as emoções nunca são constantes.
Ela estava livre. Feliz também. O que sentia por ele ainda existia, mas eram sentimentos sem lágrimas, sem culpa. Sem angústia a tapar-lhe o peito. Livre.
No outro dia, beijaram as faces um do outro com carinho e deram um abraço intenso. Os olhares se pousavam por poucos segundos. Os toques causavam arrepios em ambos e um não sabia disso no outro. O ar estava solto, sem densidades.
Os dias faziam promessas, era um jogo: sorte ou azar?